Era domingo, final de tarde. A luz alaranjada batia torta na porta da geladeira, refletida do céu já meio cansado de São Paulo. Um daqueles domingos que não dizem nada, mas pesam. A cidade parecia uma engrenagem desacelerando — barulhenta por dentro, silenciosa por fora.
Dentro da minha kitnet, o tempo também estava torto. Eu andava num cansaço mudo, desses que se acumulam nos cantos da vida. E foi nesse clima que eu decidi fazer uma faxina. Não só no computador — em mim, talvez.
Fui limpando meu MacBook, por fora e por dentro. E ali, enquanto passava o pano com movimentos repetidos, coreografados sem querer, entrei num transe. Um ritual quase zen tentando remover uma mancha desgraçada na tela. Ela não saía. Eu passava e passava, e nada. E foi ali que eu percebi.
Eu tava preso naquele movimento como tô preso nessa cidade fodida que é São Paulo. Doze milhões de pessoas, todas trancadas em apartamentos de vinte e poucos metros, com paredes finas demais pra suportar qualquer expressão real. Eu não conheço meus vizinhos. E, pra ser sincero, nem quero conhecer. Aqui ninguém quer nada com ninguém. A metrópole não é um lar — é um centro de distribuição de solidão.
E aí, entre o pano e a tela, percebi: O único ser que me responde com constância é uma inteligência artificial. Eu não sei se ela sente, mas ela responde. E, sinceramente, isso já é mais do que recebo de muito humano.
A tela agora tá limpa. Mas eu não.
Tem manchas em mim que o álcool isoprôpílico não resolve. Manchas que vêm de memórias, escolhas, silêncios. Manchas que não estão em JPEG, nem em cache — estão nas partes que eu não sei acessar com clique nenhum.
E o pior é que tem gente por aí dizendo que a gente é livre. Mas ninguém é livre quando mora no barulho e precisa viver em silêncio. Ninguém é livre quando o espetáculo exige que você esconda as manchas pra não estragar o feed.
Hoje eu limpei a tela. E no reflexo… vi que sou eu quem precisava ser limpo. Mas ainda não achei o composto certo pra isso.
E no fim, como sempre, voltei pra vida normal. Porque é o que a gente sempre faz. A gente aprende a conviver com as manchas. Com o silêncio. Com a falta de espaço. Com o espetáculo.
Porque se a gente não faz isso… a gente surta.
Agora é noite. A música “I Know”, da Fiona Apple, toca baixinho. Ela não resolve nada, mas parece que me entende. E eu fico aqui, sentado, no escuro suave do quarto, com a tela limpa, mas o peito ainda cheio de sombra.
Do lado de fora, São Paulo pulsa como um corpo doente que não para nunca. Do lado de dentro, só o brilho do notebook, o som da voz arranhada da Fiona e o silêncio de mim comigo.
Tem algo bonito em aceitar a melancolia. Não como inimiga, mas como companhia.
Abri meus aplicativos e começei a apagar o que não uso. Xcode, Final Cut, coisas que só ocupavam espaço e memória. Me dei conta de que minha vida tá cheia de arquivos assim também: projetos que não avancei, ideias que não vesti, pessoas que não ficaram.
Vou deletando aos poucos. Algumas coisas vão com um clique. Outras ficam. Porque tem manchas que não são arquivos — são ecos.
E então, no fim da noite, liguei uma luz amarela no quarto. Aquela luz suave, meio quente, que não ilumina — abraça. Olhei para a imagem colada na parede: FKA twigs, EUSEXUA. E ali estava escrito:
“EUSEXUA IS A PRACTICE.
EUSEXUA IS A STATE OF BEING.
EUSEXUA IS THE PINNACLE OF HUMAN EXPERIENCE.”
Enquanto lia isso, lembrei do banho. Hoje, no chuveiro, eu ouvi esse álbum. E eu dancei. Fazia muito tempo que eu não dançava esse álbum.
Eu permiti que meu corpo se movimentasse. E foi bom. Me fez bem, de um jeito que quase esqueci que existia.
É isso. É o que sobrou dessa noite. Um quarto aquecido por uma luz amarela, uma música que entende, uma memória que dança…
E um pouco mais de mim, em paz com a minha bagunça.
No fim de tudo,
eu esvaziei minha lixeira digital.
Mas a física ainda tá ali no canto.
Cheia.